Caros colegas Aíla, Mário e Gildemar,
Gostaria inicialmente de afirmar o grande prazer em participar das discussões deste fórum.
Agradeço também ao Mário pela menção amigável e honrosa à minha participação na lista "Jesus Histórico".
Bom, li todos os posts, desde o início da discussão, e acho que a contribuição que posso dar é quanto ao judaísmo de Paulo.
Bom: inicialmente, sobre a fundação do cristianismo por Paulo, a tese de Maccoby (explícita no título do livro) não é dele. É antiga: pertence à WREDE. E sobre as dúvidas quanto ao judaísmo de Paulo, Wilhelm Heitmüller, no artigo
Zum Problem Paulus und Jesus, já tratava da questão com grande propriedade (In: ZNW 13 (1912), p. 320-337). Bousset e Bultmann já afirmaram que Paulo pertence a uma tradição judaica helenista. Mas Paulo era judeu e mantém parte do legado judeu: eis a grande "descoberta" de Sanders, que praticamente fundou a "New Perspective on Paul" (SANDERS, E. P. Patterns of Religion in Paul and Rabbinic Judaism: A Holistic Method of Comparison. HTR 66 (1973). p. 455-78.).
Por que, então, considero Maccoby equivocado (e não sou o único: sou acompanhado por Wright, Kim
et al.)?
Vamos à citação de Maccoby, posta bondosamente pela nossa colega Aíla:
En el libro presente, he usado la evidencia rabínica para establecer una contención más tangible: Aquel Pablo, quien el Nuevo Testamento desea retratar como si hubiera sido un Fariseo (Parush), quien nunca lo fue. Las consecuencias de esto, para nuestro entendimiento del cristianismo temprano son inmensas.
Pois bem: o paradigma e as fontes usadas pelo autor são:
- os ensinamentos dos fariseus (enseñanza de Fariseos)
- O Talmude e outros trabalhos rabínicos;
- Textos ebionitas;
- Pirké Avot;
- etc... (o que significa: outras fontes judaicas)
Porém, ele ignora o que se chama "judaísmo formativo" (por Andrew Overman). Até que ponto o judaísmo era matizado como o autor pretende afirmar?
A análise crítica do Talmude Babilônico e Palestinense (entre outros...) tem revelado que as tradições tidas como antigas não correspondem ao contexto do judaísmo pré-70. Os textos e cartas palestinenses e helenísticas revelam o caráter multifacetado e apocalíptico do judaísmo de então. Estas informações podem ser encontradas em: MONTEFIORE, C. G. Judaism and St. Paul: Two Essays. New York: Dutton, 1915; MOORE, G. F. Christian Writers on Judaism HTR 14 (1921). p. 197-254; MOORE, G. F. Judaism in the First Centuries of the Christian Era. 2 Vol. Harvard: HUP, 1927; DAVIES, W. D. Paul and Rabbinic Judaism: Some Rabbinic Elements in Pauline Theology. 4ª Ed. Philadelphia: Fortress, 1980 [1948]; SANDERS, E. P. Patterns of Religion in Paul and Rabbinic Judaism: A Holistic Method of Comparison. HTR 66 (1973). p. 455-78; DAS, A. Andrew. Beyond Covenantal Nomism: Paul, Judaism, and Perfect Obedience. Concordia Journal 27 (2001). p. 234-52; DAVIES, W. D. & STURDY, John (eds.). The Cambridge History of Judaism: Volume 3 - The Early Roman Period. Cambridge: CUP, 1999. p. 3.678-730.
É certo que o rabinismo apenas surgiu como movimento mais exclusivista após a destruição do Templo. A partir deste período, cristãos foram expulsos da sinagoga (como defende BROWN, R. E., A Comunidade do Discípulo Amado, p. 34ss; e CARTER, W. Matthew, p. 27, 29, 53, 129). Antes disto, o judaísmo não era aquilo que a tradição judaica formada apenas 200 anos depois quer fazer crer.
Só pra dar dois exemplos do NT da tolerância judaica nos meios mais intolerantes:
- Tiago era líder da sinagoga de Jerusalém;
- Estevão não foi condenado pro dizer ser Jesus o Messias, mas por acusar os membros do sinédrio de assassinos [phoneîs] e traidores [prodótai] (At 6.52-54);
...
Em minha opinião, as fontes judaicas usadas por Maccoby são ANACRÔNICAS!
Quanto às fontes judeu-cristãs - no caso, ebionitas - concordo com a afirmação de Maccoby postada bondosamente pela Aíla:
Robert Graves y Joshua Podro en el “Evangelio Nazareno”. Ellos han restaurado la tendencia que tenían los Ebionitas muy en serio; pero aunque ellos hicieron algunos comentarios fuertes en contra de ellos. Espero que el este libro presente haga más para cambiar esta actitud predominante y despectiva hacia la evidencia de esta comunidad fascinante e importantemente antigua, la secta judía de los Ebionitas.
Mas tenho alguns senões a fazer. Primeiramente, ele supervaloriza a importância dos ebionitas, em detrimento da importância do querigma. No querigma cristão primitivo, desde muito cedo, antes da redação de qualquer epístola paulina, estavam:
- Fórmulas sobre a ressurreição: que afirmavam a ressurreição de Jesus por Deus (
pisteúomen hóti ho theòs égeiren Iesoûn ek nekrôn);
- Fórmulas sobre a morte: que afirmavam a morte (
apothaneîn, ou entrega [
paradoûmai, doûnai]) de Jesus pelos crentes ("por nós" [hemôn]), numa indicação entiga da morte expiatória;
- Aclamação, ou
homologia [homologeîn]:afirmavam o senhorio de Jesus nas categorias da LXX (kýrios [Ieroûs]).
Ainda há outras fórmulas, mas estas bastam para revelar que a proclamação mais primitiva surgiu no interior de uma comunidade palestinense, judaica, inserida no Templo (At 2.46: "Diariamente perseveravam unânimes no templo"') e aceita pela comunidade judaica. Pois bem: o ebionismo não assumiu o querigma, e se assumiu, o negou. É por isto é que ele desapareceu enquanto grupo cristão. Vejamos características do texto ebionita e de grupos cristãos-judaizantes (se quiserem ampliá-las depois, a gente cria um post só pro tema):
- Evangelho dos Ebionitas: há familiaridades com os sinóticos, mas enfatiza o chamamento dos apóstolos, com estilo "nós" e marcas da INIMIZADE COM O TEMPLO. Eles eram menos judeus que Paulo só por causa disto (CULLMANN, RGG II).
- Evangelho dos Hebreus: há menções ampliadas das evidências da ressurreição de Jesus, com forte ênfase para a importância de Tiago (HENNECKE, SNG).
Portanto, voltando ao argumento sobre o judaísmo de Paulo.
Voltando para a relação de Paulo com o judaísmo, é importante afirmar: mesmo com sua proclamação, o cristianismo judaico era aceito na sinagoga. Daí, a segunda afirmação a se fazer é: no centro do querigma paulino está o Antigo Testamento, lido segundo o querigma (nas epístolas mais antigas) e segundo os desenvolvimentos próprios que ele imprimiu. As citações do querigma em Paulo apontam para a redenção e expiação, temas judaicos. As temáticas de Romanos subscrevem a idéia de pecado do judaísmo farisaico. E ele resolve o problema de suas crenças com o querigma cristão-primitivo, com a idéia de redenção, de expiação (por sua vez, extraída de uma concepção judaica):
- "por nossos pecados" (1 Co 15.3): ecoa Is 53.4-6,11s.
Maccoby é um autor respeitável. Mas desconfio de pesquisas como as acredito que existem pesquisas que descrevem de maneira mais apropriada os limites judaísmo paulino, sem colocado numa "camisa-de-força" anacrônica.
O estudo do Novo Testamento passa, necessariamente, pela compreensão da pluralidade do cristianismo primitivo. A observação dessa exigência é uma das mudanças mais significativas na pesquisa neotestamentária do século XX - e ela não é observada pelo autor, ainda que ele liste e critique cada uma das escolas de interpretação do Novo Testamento em sua obra.
Helmut Koester, por exemplo, afirmou que a compreensão do judaísmo, do helenismo e do Império Romano é decisiva para a análise da diversidade cristã das origens. De fato, o contexto é um importante fator para se entender as diversas facetas do testemunho cristão, sendo ainda importante ressaltar que as dimensões mais amplas do judaísmo, helenismo e do Império Romano, quando aproximadas, também revelam grande disparidade interior, além de interseções importantes entre si.
Um segundo ponto de observação, com relevância para os estudos paulinos, são as diferenças entre as tradições do cristianismo primitivo. Estas distinções não são percebidas apenas no detalhamento das assimetrias entre os textos de tradições distintas, mas no reconhecimento e intercâmbio explícito entre as mesmas.
Em terceiro lugar, os autores cristãos não apresentam pensamento monolítico, uniforme e invariante. É possível encontrar grande disparidade no pensamento do mesmo autor, quer seja na mesma obra, quer seja entre as obras escritas pelo mesmo autor. Afirmar que as particularidades de Paulo o descaracterizam como judeu é como fazer uma arca que leva ao Hades e colocar lá Paulo, Anás, Caifás, Fílon, Gamaliel etc.
Um novo fator de análise que acho que pode ser considerado emerge no encontro com as tradições cristãs neotestamentárias: a história da pesquisa, que permite o encontro com diversas facetas e leituras dos diversos testemunhos sobre o cristianismo. O percurso da investigação a respeito das diversas tradições deve passar pelo exame circunspeccioso dos critérios, métodos e conclusões assumidas desde a recepção do texto. Os contextos judaicoe pagão devem ser estudados com maior proximidade.
Diante de tantos “Paulos”, é preciso reaver o contexto em que o apóstolo Paulo surgiu. É isto que Maccoby tenta, mas acho que fracassa pela sua "unilateralidade". Vejamos aspectos gerais:
1) O Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento: o testemunho neotestamentário está profundamente ligado com as expectativas e esperanças do judaísmo. Grande parte dos conceitos do Novo Testamento são ecos ou releituras do ambiente veterotestamentário. É preciso recuperar o tema do judaísmo no cristianismo.
2) A Influência de Jesus e da Igreja Primitiva em Paulo: uma vez compreendido o Novo Testamento e sua vinculação com o Antigo, deve-se partir para a vinculação de Paulo com o chamado querigma cristão. As semelhanças e diferenças existem, e precisam ser devidamente investigadas e apontadas.
3) Paulo Sob o Signo do Judaísmo e do Helenismo: a análise mais recente a respeito de Paulo trata da relação entre Paulo, o judaísmo, o helenismo e o Império Romano.
Acho que a obra que mais se aproxima desta análise não é a de Maccoby. É uma obra antiga, mas pra mim ainda não superada: MEEKS, Wayne. Os Primeiros Cristãos Urbanos. Ela é cheia de defeitos, mas consegue olhar o texto numa perspectiva mais clara. Os textos de Richard Horsley também são bons, mas falham pelo radicalismo (afirmar que a
ekklesia era uma sociedade política de contracultura, etc).
Bom: esta é minha contribuição...
Abraços a todos,
Brian